É no contexto destas grandes mobilizações que ressurge, no Sul
do país, região em que se deu intenso processo de modernização da agricultura,
a luta dos "sem terra" através de algumas ocupações - embrião do MST.
A primeira delas deu-se em 1978 na Fazenda Sarandi, no município de Rondinha e
Ronda Alta (RS), pelas 1.100 famílias expulsas da Reserva Indígena de Nonoai,
em decorrência do conflito entre arrendatários da FUNAI e índios.
Esta ocupação resultou no assentamento, pelo governo, de
parte destas famílias em projetos de colonização no Mato Grosso. Os que
permaneceram na região foram organizados por membros da igreja local e, com
apoio de parlamentares e entidades da sociedade civil, ocuparam em 79, as
glebas Macali e Brilhante, originando os assentamentos da Granja Macali I e II,
Brilhante e Bom Retiro, em Palmeira das Missões (RS) e CEMAPA, em Rondinha.
As ações dos "sem terra" vão tendo maior
organicidade no Rio Grande do Sul e, com o acampamento às margens da estrada
próxima à Fazenda Sarandi, surgiu o "Movimento dos Colonos Sem Terra de
Encruzilhada Natalino", em Ronda Alta, no mês de dezembro de 1980. Este
movimento constituiu-se no marco das lutas dos "sem terra" pela
repercussão obtida, por terem conseguido a solidariedade de diversas entidades
e propostas de solução por parte do governo.
O movimento de Encruzilhada Natalino serviu também para
aglutinar as pessoas que lutavam pela terra em diferentes pontos do estado.
Como exemplo disso tem-se, em 1979, a questão ecológica, que explodia como uma
bomba na região de Carazinho. Havia muita gente morrendo e sendo ferida pelos
venenos agrícolas. Pelas colônias proliferavam grupos de jovens que brigavam
pelo meio ambiente. Um deles, em Não-Me-Toque, era liderado por um jovem
seminarista, Sérgio Antônio Gorgen. Ele conheceu o padre Arnildo Fritzen na
Natalino e o convidou para dar uma palestra para o grupo. Logo após o Frei
Sérgio se integrou à luta pela terra.
A partir de maio de 1981, após cinco meses de acampamento,
teve início a edição do boletim dos "sem terra", então denominado
"Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem
Terra". Ele era editado por uma secretaria de apoio em Porto Alegre que
ficava numa sala emprestada pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, na
rua dos Andradas.
Participavam da elaboração do boletim integrantes da
Comissão Pastoral da Terra do RS e profissionais, como os jornalistas Flademir
Araújo e Laerte Meliga. A sua primeira edição apresentava onze páginas com uma
tiragem de 700 exemplares. Ele era rodado em mimeógrafo, datilografado em folha
de ofício sem um projeto gráfico.
Segundo o Frei Sérgio Gorgen, a idéia do Boletim pode ter
surgido quando, em novembro de 1980, um grupo de colonos da Fazenda Brilhante
acamparam durante dez dias na Praça da Matriz, em Porto Alegre. “No final dessa
luta, que nós conseguimos assentamentos em dois lugares, eu e o Arcílio, meu
colega, junto com outras pessoas escrevemos um relato do que aconteceu e
fizemos uma espécie de boletim chamado "Diário de uma Luta" e
enviamos para vários lugares.” Pode-se dizer que este tenha sido o precursor do
Boletim Sem Terra, que, conforme o dirigente nacional do MST João Pedro Stédile,
surgiu para responder a uma demanda de informação e comunicação.
Stédile relata que, “o acampamento já durava cinco meses, o
que era uma novidade para a época da ditadura militar, então, muitas pessoas da
cidade queriam saber como estava o acampamento, o que estava acontecendo lá e a
grande imprensa dava pouco espaço. Essa foi uma luta de vanguarda para a época,
ela se equiparou, em termos de representação política de luta contra a ditadura
no campo, ao que foram as greves do ABC em 1979. Então, Encruzilhada Natalino
era um foco de atenção das lutas rurais em todo o país, e para responder a
essa demanda se criou o Boletim dos Sem Terra. Foi um meio de comunicação e de
solidariedade, porque provocava que as pessoas se solidarizassem com a luta,
pois, naquele momento, a própria ditadura transformou a Encruzilhada Natalino
na principal batalha política do campo.”
Entretanto o episódio dos "sem terra" de
Encruzilhada Natalino não foi isolado. Ações semelhantes eclodiram em outros
estados. Em 1980 deu-se a ocupação da Fazenda Burro Branco em Campo Erê (SC),
com mais de 300 famílias, e a da Fazenda Primavera em Andradina (SP). Em 1981,
em decorrência da construção da hidrelétrica de Itaipu, formou-se o Movimento
dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (MASTRO) a partir do Movimento
Terra e Justiça, enquanto movimento dos expropriados pela construção da
barragem.
No Mato Grosso do Sul também proliferaram conflitos, nos
quais os fazendeiros tentavam despejar centenas de famílias que viviam como
parceiros - agricultores que trabalham com suas famílias, arrendam uma terra de
outro e fazem uma parceria - nas fazendas e estes mesmos passaram a ocupar as
terras.
Em outros estados, como Bahia, Rio de Janeiro e Goiás, também aconteceram ocupações de terra, por parte de famílias que se organizaram para isso. No entanto, não havia nenhum contato entre uma ocupação e outra. A partir de 1981, passaram a realizar-se encontros entre as lideranças dessas lutas localizadas. Esses encontros eram promovidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Essa costura política feita pela CPT entre as diversas
correntes políticas existentes no meio dos colonos deu força à luta deles,
porque os uniu. Nos "tempos heróicos", quando havia no Rio Grande do
Sul o Movimento dos Agricultores Sem-Terra (MASTER), no norte do país organizavam-se
as Ligas Camponesas e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do
Brasil (ULTAB). Muito embora houvesse consciência política das lideranças de
que a miséria do trabalhador era a mesma em qualquer canto do Brasil, não
havia, de fato, uma união de esforços.
O máximo que eles conseguiram foi montar a estrutura administrativa
da CONTAG, em 1963, e 18 federações de trabalhadores rurais, entre elas a
FETAG, no RS. Estas entidades, durante o período do Regime Militar, tornaram-se
importantes ferramentas nas mãos de quem reprimia os movimentos populares.
A CPT foi criada em 1975, no Encontro Pastoral das Igrejas da Amazônia Legal. Segundo Leonildo Medeiros conta em “A história dos movimentos sociais no campo”, “a CPT assumiu inicialmente o compromisso de "empenhar-se no processo global de reforma agrária do nosso país, dando cumprimento ao espírito e à letra do Estatuto da Terra". A comissão teria por finalidade "interligar, assessorar e dinamizar os que trabalham em favor dos homens sem terra e dos trabalhadores rurais".
O surgimento da CPT ligou-se diretamente aos efeitos da
política de ocupação da Amazônia empreendida pelos governos militares. Em
1971, D. Pedro Casaldáliga divulgava sua carta pastoral, "Uma Igreja na
Amazônia em conflito com o latifúndio e com a marginalização social",
onde explicitava uma linha de compromissos com posseiros, índios, peões e
outros marginalizados. Na época, o documento teve grande repercussão como
denúncia de uma realidade ignorada pela sociedade.
A ação da igreja na região era duramente reprimida. O
processo contra o padre Francisco Jentel em 1973, a inclusão da equipe da
Pastoral de São Félix do Araguaia, inclusive do bispo Casaldáliga, na Lei de
Segurança Nacional, o assassinato, em 1976, dos padres Rodolfo Lukembein e João
Bosco Penido Burnier são apenas momentos ilustrativos das tentativas de impedir
a ação da pastoral na região, que vivia uma espécie de convulsão anárquica, na
feliz expressão de José de Souza Martins.
Desse quadro surgiu a Comissão Pastoral da Terra, como
entidade de apoio às lutas dos trabalhadores, definindo-se como serviço de
articulação e de assessoria. Seu eixo de trabalho era o apoio à organização
popular: "Os trabalhadores precisam organizar-se livremente, desde as formas
mais localizadas de comissões ou associações até a constituição de partidos
políticos que canalizem suas forças para organizar ou reorganizar a sociedade
segundo suas aspirações".
Investindo no trabalho cotidiano de organização, que passava
pela análise e crítica das práticas sindicais concretas, a CPT dispunha a seu
favor do fato de que, sendo um organismo vinculado à Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) e contando com alguns bispos entre seus membros, podia
fazer valer em determinadas situações o peso institucional. Assim, num período
de intensa repressão, pôde assumir o papel de canal de denúncia da violência,
adquirindo importância na formação de uma consciência nacional em relação à
problemática do campo.
Originado na Amazônia, o trabalho da CPT coincidiu com o de
outras ações pastorais de alguns padres e bispos em outras regiões do país,
como foi o caso do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Maranhão e Goiás.
Rapidamente, espalhou-se por todo o Brasil e em 1979 já eram quinze as suas regionais.
No entanto, essa expansão só se dava nas dioceses em que os bispos apoiavam
seus objetivos ou, pelo menos, os aceitavam.
A ação da igreja ganhou peso na luta pela terra a partir de
1980, com a divulgação do documento "A Igreja e os problemas da terra",
produto da XVIII Assembléia da CNBB. Com a intensificação dos conflitos e a
crescente mobilização dos trabalhadores, houve uma maior presença da igreja
junto a esse segmento. Sua participação foi mesmo essencial para algumas
resistências bem-sucedidas, como foi o caso de Ronda Alta, já citado, e para a
articulação do Movimento Sem Terra.
Outro fator que contribuiu para o surgimento do MST foi o
tratamento dado pela CONTAG à luta pela terra: resolução do conflito pela via
institucional. As ocupações e os acampamentos organizados pelos Sem Terra, num
primeiro momento, passaram por fora do sindicalismo "contaguiano" com
o apoio ou mesmo direção da CPT. Esta teve participação ativa na criação das
oposições sindicais que se formaram no sindicalismo rural brasileiro a partir
do início dos anos 80 e ganharam a direção de vários sindicatos de
trabalhadores rurais, dando um novo tratamento à luta pela terra, condizente
com as resoluções do III Congresso da CONTAG.
A partir de 1982, a luta dos "sem terra" começou a
ter maior articulação. Com o objetivo de congregar as lutas, a CPT realizou em
julho de 82 um encontro dos trabalhadores rurais "Sem Terra" em
Medianeira, no Paraná, envolvendo cinco estados: Mato Grosso do Sul, São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Neste mesmo ano, no mês de setembro, realizou-se o I
Encontro Nacional dos Sem Terra, em Goiânia, com a participação de representantes
de 16 estados, no qual se verificou a necessidade de formar Comissões Regionais
de Trabalhadores Sem Terra. As lideranças presentes no encontro avaliaram que
no sul existia uma maior organização e uma tendência da luta avançar mais
rapidamente, tendo, por esta razão, o movimento constituído suas bases organizacionais
nos estados desta região.
Em janeiro de 1983, em Chapecó, é criada a Comissão Regional
Provisória, composta por dois lavradores de cada estado que se reuniam a cada
três meses. A Secretaria Regional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra foi
sediada em Porto Alegre.
A partir de 1984, o próprio movimento passou a articular os
encontros, até então organizados pela CPT, e realizou o I Encontro Nacional do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR), com a participação
de doze estados, ganhando uma dimensão nacional. Neste encontro formalizou-se a
criação do Movimento Sem Terra e as lideranças presentes definiram as formas
de organização do movimento, seus princípios, suas reivindicações e formas de
luta, iniciando-se, a partir daí, as grandes ocupações de terra e os acampamentos
nos estados em que o MST está consolidado.
Em janeiro de 1985, realizou-se em Curitiba (PR), o I
Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a presença de 1.500
delegados. Neste encontro foi eleita a coordenação nacional do MST, composta
por dois representantes de cada um dos doze estados que integravam o movimento
na época: RS, MG, SC, SP, PR, MS, BA, SE, ES, RJ, RO e MA.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surgiu
da insatisfação dos agricultores com a política de exportação que foi imposta
pelo regime militar, responsável pela expulsão de milhares de pequenos
agricultores do campo. Organizados por entidades civis, como o Movimento de
Justiça e Direitos Humanos e a Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), após 10 anos de sua instituição, o MST tornou-se autônomo e um dos
mais expressivos movimentos sociais do Brasil.
A organização do MST dá, assim, novo sentido à luta dos
"Sem Terra", articulando-o à reivindicação da reforma agrária e, numa
perspectiva mais ampla, à luta pela construção de uma sociedade sem explorados
nem exploradores.
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