terça-feira, 18 de março de 2014

Capítulo 7 - Assim nasce o MST

O MST surgiu da insatisfação dos agricultores com a política de exportação que foi imposta pelo regime militar, responsável pela expulsão de milhares de pequenos agricultores do campo.
Foto: Sebastião Salgado.

É no contexto destas grandes mobilizações que ressurge, no Sul do país, região em que se deu intenso processo de modernização da agricultura, a luta dos "sem terra" através de algumas ocupações - embrião do MST. A primeira delas deu-se em 1978 na Fazenda Sa­randi, no município de Rondinha e Ronda Alta (RS), pelas 1.100 famílias expulsas da Reserva Indígena de Nonoai, em decorrência do conflito entre arrendatários da FUNAI e índios.


Esta ocupação resultou no assentamento, pelo governo, de parte destas famílias em projetos de colonização no Mato Grosso. Os que permaneceram na região foram organizados por membros da igreja local e, com apoio de parlamentares e entidades da sociedade civil, ocuparam em 79, as glebas Macali e Brilhante, originando os assentamentos da Granja Macali I e II, Brilhante e Bom Retiro, em Palmeira das Missões (RS) e CEMAPA, em Rondinha.

As ações dos "sem terra" vão tendo maior organicidade no Rio Grande do Sul e, com o acampamento às margens da estrada próxima à Fazenda Sarandi, surgiu o "Movimento dos Colonos Sem Terra de Encruzilhada Natalino", em Ronda Alta, no mês de dezembro de 1980. Este movimento constituiu-se no marco das lutas dos "sem terra" pela repercussão obtida, por terem conseguido a solidariedade de diversas entidades e propostas de solução por parte do governo.

O movimento de Encruzilhada Natalino serviu também para aglutinar as pessoas que lutavam pela terra em diferentes pontos do estado. Como exemplo disso tem-se, em 1979, a questão ecológica, que explodia como uma bomba na região de Carazinho. Havia muita gente morrendo e sendo ferida pelos venenos agrícolas. Pelas colônias proliferavam grupos de jovens que brigavam pelo meio ambiente. Um deles, em Não-Me-Toque, era liderado por um jovem seminarista, Sérgio Antônio Gorgen. Ele conheceu o padre Arnildo Fritzen na Natalino e o convidou para dar uma palestra para o grupo. Logo após o Frei Sérgio se integrou à luta pela terra.

A partir de maio de 1981, após cinco meses de acampamento, teve início a edição do boletim dos "sem terra", então denominado "Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra". Ele era editado por uma secretaria de apoio em Porto Alegre que ficava numa sala emprestada pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, na rua dos Andradas.

Participavam da elaboração do boletim integrantes da Comissão Pastoral da Terra do RS e profissionais, como os jornalistas Flademir Araújo e Laerte Meliga. A sua primeira edição apresentava onze páginas com uma tiragem de 700 exemplares. Ele era rodado em mimeógrafo, datilografado em folha de ofício sem um projeto gráfico.

Segundo o Frei Sérgio Gorgen, a idéia do Boletim pode ter surgido quando, em novembro de 1980, um grupo de colonos da Fazenda Brilhante acamparam durante dez dias na Praça da Matriz, em Porto Alegre. “No final dessa luta, que nós conseguimos assentamentos em dois lugares, eu e o Arcílio, meu colega, junto com outras pessoas escrevemos um relato do que aconteceu e fizemos uma espécie de boletim chamado "Diário de uma Luta" e enviamos para vários lugares.” Pode-se dizer que este tenha sido o precursor do Boletim Sem Terra, que, conforme o dirigente nacional do MST João Pedro Stédi­le, surgiu para responder a uma demanda de informação e comuni­cação.

Stédile relata que, “o acampamento já durava cinco meses, o que era uma novidade para a época da ditadura militar, então, muitas pessoas da cidade queriam saber como estava o acampamento, o que estava acontecendo lá e a grande imprensa dava pouco espaço. Essa foi uma luta de vanguarda para a época, ela se equiparou, em termos de representação política de luta contra a ditadura no campo, ao que foram as greves do ABC em 1979. Então, Encruzilhada Natalino era um foco de atenção das lutas ru­rais em todo o país, e para responder a essa demanda se criou o Boletim dos Sem Terra. Foi um meio de comunicação e de solidariedade, porque provocava que as pessoas se solidarizassem com a luta, pois, naquele momento, a pró­pria ditadura transformou a Encru­zilhada Natalino na principal batalha política do campo.”

Entretanto o episódio dos "sem terra" de Encruzilhada Natalino não foi isolado. Ações semelhantes eclodiram em outros estados. Em 1980 deu-se a ocupação da Fazenda Burro Branco em Campo Erê (SC), com mais de 300 famílias, e a da Fazenda Primavera em Andradina (SP). Em 1981, em decorrência da construção da hidrelétrica de Itaipu, formou-se o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (MASTRO) a partir do Movimento Terra e Justiça, enquanto movimento dos expropriados pela construção da barragem.

No Mato Grosso do Sul também proliferaram conflitos, nos quais os fazendeiros tentavam despejar centenas de famílias que viviam como parceiros - agricultores que trabalham com suas famílias, arrendam uma terra de outro e fazem uma parceria - nas fazendas e estes mesmos passaram a ocupar as terras.

Em outros estados, como Bahia, Rio de Janeiro e Goiás, também aconteceram ocupações de terra, por parte de famílias que se orga­nizaram para isso. No entanto, não havia nenhum contato entre uma ocupação e outra. A partir de 1981, passaram a realizar-se encon­tros entre as lideranças dessas lutas localizadas. Esses encontros eram promovidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Essa costura política feita pela CPT entre as diversas correntes políticas existentes no meio dos colo­nos deu força à luta deles, porque os uniu. Nos "tempos heróicos", quando havia no Rio Grande do Sul o Movimento dos Agricultores Sem-Terra (MASTER), no norte do país organizavam-se as Ligas Camponesas e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB). Muito embora houvesse consciência política das lideranças de que a miséria do trabalhador era a mesma em qualquer canto do Brasil, não havia, de fato, uma união de esforços.

O máximo que eles conseguiram foi montar a estrutura adminis­trativa da CONTAG, em 1963, e 18 federações de trabalhadores ru­rais, entre elas a FETAG, no RS. Estas entidades, durante o período do Regime Militar, tornaram-se importantes ferramentas nas mãos de quem reprimia os movimentos populares.

A CPT foi criada em 1975, no Encontro Pastoral das Igrejas da Amazônia Legal. Segundo Leonildo Medeiros conta em “A história dos movimentos sociais no campo”, “a CPT assumiu inicialmente o com­pro­misso de "empenhar-se no processo global de reforma agrária do nosso país, dando cumprimento ao espírito e à letra do Estatuto da Terra".  A comissão teria por finalidade "interligar, assessorar e dinamizar os que trabalham em favor dos homens sem terra e dos trabalhadores rurais".

O surgimento da CPT ligou-se diretamente aos efeitos da política de ocupação da Amazônia empreendida pelos governos mili­tares. Em 1971, D. Pedro Casaldáliga divulgava sua carta pasto­­ral, "Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e com a margi­nalização social", onde explicitava uma linha de compromissos com posseiros, índios, peões e outros marginalizados. Na época, o docu­mento teve grande repercussão como denúncia de uma realidade igno­rada pela sociedade.

A ação da igreja na região era duramente reprimida. O processo contra o padre Francisco Jentel em 1973, a inclusão da equipe da Pastoral de São Félix do Araguaia, inclusive do bispo Casaldáliga, na Lei de Segurança Nacional, o assassinato, em 1976, dos padres Rodolfo Lukembein e João Bosco Penido Burnier são apenas momentos ilustrativos das tentativas de impedir a ação da pastoral na região, que vivia uma espécie de convulsão anárquica, na feliz expressão de José de Souza Martins.

Desse quadro surgiu a Comissão Pastoral da Terra, como entidade de apoio às lutas dos trabalhadores, definindo-se como serviço de articulação e de assessoria. Seu eixo de trabalho era o apoio à organização popular: "Os trabalhadores precisam organizar-se livremente, desde as formas mais localizadas de comissões ou associações até a constituição de partidos políticos que canalizem suas forças para organizar ou reorganizar a sociedade segundo suas aspirações".

Investindo no trabalho cotidiano de organização, que passava pela análise e crítica das práticas sindicais concretas, a CPT dispunha a seu favor do fato de que, sendo um organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e contando com alguns bispos entre seus membros, podia fazer valer em determinadas situações o peso institucional. Assim, num período de intensa repressão, pôde assumir o papel de canal de denúncia da violência, adquirindo importância na formação de uma consciência nacional em relação à problemática do campo.

Originado na Amazônia, o trabalho da CPT coincidiu com o de outras ações pastorais de alguns padres e bispos em outras regiões do país, como foi o caso do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Maranhão e Goiás. Rapidamente, espalhou-se por todo o Brasil e em 1979 já eram quinze as suas regionais. No entanto, essa expan­são só se dava nas dioceses em que os bispos apoiavam seus obje­tivos ou, pelo menos, os aceitavam.

A ação da igreja ganhou peso na luta pela terra a partir de 1980, com a divulgação do documento "A Igreja e os problemas da terra", produto da XVIII Assembléia da CNBB. Com a intensificação dos conflitos e a crescente mobilização dos trabalhadores, houve uma maior presença da igreja junto a esse segmento. Sua participação foi mesmo essencial para algumas resistências bem-sucedidas, como foi o caso de Ronda Alta, já citado, e para a articulação do Movimento Sem Terra.

Outro fator que contribuiu para o surgimento do MST foi o tratamento dado pela CONTAG à luta pela terra: resolução do con­flito pela via institucional. As ocupações e os acampamentos organizados pelos Sem Terra, num primeiro momento, passaram por fora do sindicalismo "contaguiano" com o apoio ou mesmo direção da CPT. Esta teve participação ativa na criação das oposições sindi­cais que se formaram no sindicalismo rural brasileiro a partir do início dos anos 80 e ganharam a direção de vários sindicatos de trabalhadores rurais, dando um novo tratamento à luta pela terra, condizente com as resoluções do III Congresso da CONTAG.

A partir de 1982, a luta dos "sem terra" começou a ter maior articulação. Com o objetivo de congregar as lutas, a CPT realizou em julho de 82 um encontro dos trabalhadores rurais "Sem Terra" em Medianeira, no Paraná, envolvendo cinco estados: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Neste mesmo ano, no mês de setembro, realizou-se o I Encontro Nacional dos Sem Terra, em Goiânia, com a participação de repre­sentantes de 16 estados, no qual se verificou a necessidade de formar Comissões Regionais de Trabalhadores Sem Terra. As lide­ranças presentes no encontro avaliaram que no sul existia uma maior organização e uma tendência da luta avançar mais rapidamente, tendo, por esta razão, o movimento constituído suas bases organi­zacionais nos estados desta região.

Em janeiro de 1983, em Chapecó, é criada a Comissão Regional Provisória, composta por dois lavradores de cada estado que se reuniam a cada três meses. A Secretaria Regional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra foi sediada em Porto Alegre.

A partir de 1984, o próprio movimento passou a articular os encontros, até então organizados pela CPT, e realizou o I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR), com a parti­cipação de doze estados, ganhando uma dimensão nacional. Neste encontro formalizou-se a criação do Movimento Sem Terra e as lide­ranças presentes definiram as formas de organização do movimento, seus princípios, suas reivindicações e formas de luta, iniciando-se, a partir daí, as grandes ocupações de terra e os acampa­mentos nos estados em que o MST está consolidado.

Em janeiro de 1985, realizou-se em Curitiba (PR), o I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a presença de 1.500 delegados. Neste encontro foi eleita a coor­denação nacional do MST, composta por dois representantes de cada um dos doze estados que integravam o movimento na época: RS, MG, SC, SP, PR, MS, BA, SE, ES, RJ, RO e MA.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surgiu da insatisfação dos agricultores com a política de exportação que foi imposta pelo regime militar, responsável pela expulsão de milhares de pequenos agricultores do campo. Organizados por entidades civis, como o Movimento de Justiça e Direitos Humanos e a Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra (CPT), após 10 anos de sua instituição, o MST tornou-se autônomo e um dos mais expressivos movimentos sociais do Brasil.

A organização do MST dá, assim, novo sentido à luta dos "Sem Terra", articulando-o à reivindicação da reforma agrária e, numa perspectiva mais ampla, à luta pela construção de uma sociedade sem explorados nem exploradores.

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