quarta-feira, 26 de março de 2014

A “Guerrilha dos dentes de ouro", primeira resistência armada à ditadura


O site Documentos Revelados apresenta uma série de informações, acervos documentais, livros, imagens e vídeo sobre a ditadura militar no Brasil. Vale a pena ser conferido. Reproduzo abaixo um texto de Aluizio Palmar, sobre a Guerrilha de Três Passos.

Pouca conhecida e estudada, a Guerrilha de Três Passos, recupera a dimensão de um espaço de tempo de consolidação da ditadura. Eram 22 jovens, alguns comunistas, outros nacionalistas dos Grupos dos Onze, quase todos camponeses.

Eles foram capturados nos dias 27 e 28 de março de 1965. Alguns na proximidades de Capitão Leônidas Marques e outros nas proximidades de Santa Lucia, localidades do Estado do Paraná. Antes de serem presos tomaram um caminhão, do destacamento da Brigada Militar na cidade de Três Passos, ocuparam uma rádio e leram uma proclamação conclamando o povo a aderir a luta contra a ditadura.

Avançaram em direção ao Paraná, cruzando o Oeste de Santa Catarina, tomando destacamentos militares, recolhendo armamento e fazendo proclamas. Pagavam o abastecimento com um bônus e diziam aos comerciantes que seriam reembolsados após a deposição do governo militar.

Entre as cidades de Capitão Leônidas Marques e a vila de Santa Lucia, foram capturados após um confronto com forças do Exércido, quando um sargento morreu baleado pelas seus colegas de farda.

Após a prisão os guerrilheiros foram levados para o Batalhão de Fronteiras, em Foz do Iguaçu e ali torturados. Os algozes do chefe do grupo, coronel cassado Jefferson Cardin Osório, foi o coronel Curvo, Capitão Rui Vieira do Rego Monteiro, o Major Ari Ronconi e o Capitão Índio do Brasil.  Jefferson foi amarrado junto as grades, com os pés e mãos  e permaneceu suspenso do dia 27 para o dia 28.

Clique aqui e confira em PDF texto que faz parte do livro ”Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?” e mais a dissertação para o curso de Direito da UFSC, de autoria de Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori. Além de 69 imagens do acervo de Valdetar Dornelles, sobrevivente da guerrilha e um dos lideres do movimento.

terça-feira, 25 de março de 2014

O papel dos EUA no golpe civil-militar de 64

 O Dia que Durou 21 Anos, de Camilo Tavares, com apoio de Flávio Tavares, é um documentário imperdível e uma revisão valiosa para todos, não importa o que cada um pense sobre a questão.

A Revista Superinteressante de março traz uma ótima reportagem sobre o papel dos EUA no golpe de 64 no Brasil. Reproduzo abaixo a primeira parte da matéria e o passo a passo do golpe no Brasil e nos EUA.

Os EUA derrubaram o presidente do Brasil?

Arquivos recém-abertos revelam toda a influência dos americanos no golpe de 64. Eles bancaram os golpistas, tinham tropas prontas para intervir e seu favorito sucedeu Jango. Não é conspiração: É História.

Reportagem: Jennifer Ann Thomas/ Edição: Emiliano Urbim

John Kennedy tinha um brinquedo novo. Quando os convidados chegaram, o presidente apertou um botão escondido na lateral de sua mesa, acionando um microfone ali no Salão Oval e um gravador no porão da Casa Branca. Era a estreia de uma engenhoca secreta que registrou 260 horas de conversas sigilosas.  
Olha que coincidência: a primeira gravação é sobre o Brasil. Das 11h52 às 12h20 de 30 de julho de 1962, debateu-se o futura e a fritura do presidente João Goulart. O embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, disse que Jango estava “dando a porcaria do país de graça para os...” “...comunistas”, completou Kennedy. O assessor Richard Goodwin ressaltou: “podemos muito bem querer que os militares brasileiros tomem o poder no final do ano”. Isso quase dois anos antes do golpe de 64.

Desde 1961, com a chocante renúncia de Jânio Quadros e a conturbada posse de Jango, as reuniões de Kennedy sobre nosso país eram monotemáticas: como impedir que o Brasil se tornasse uma gigantesca Cuba? Apesar disso, Lincoln Gordon, embaixador no Rio de 1961 e 66, morreu em 2009, aos 96 anos, negando que os americanos teriam participado do golpe. Durante e após a ditadura, que foi até 1985, muitos pesquisadores brasileiros menosprezaram o papel dos americanos, tachando investigações nesse sentido de paranoia e teoria da conspiração. Mas documentos revelados nos últimos anos contam uma história diferente, que vai sendo revelada aos poucos.

Parte desse material ganhou destaque no documentário O Dia que Durou 21 Anos, da dupla de filho e pai Camillo e Flávio Tavares – autor de um grande livro sobre a luta contra o regime, Memórias do Esquecimento. O filme apresenta gravações e documentos oficiais e expõe justamente a articulação do governo americano e dos militares brasileiros contra Jango. Arquivos recém-abertos nos EUA estão mexendo até com obras definitivas: os quatro livros do jornalista Elio Gaspari serão reeditados levando em conta as gravações clandestinas de Kennedy e de seu sucessor Lyndon Johnson. E ainda há muito a ser revelado: Carlos Fico, historiador da UFRJ, estima que mesmo com a Lei de Acesso à Informação ainda não se analisou nem 20% dos arquivos dos órgãos de repressão brasileiros.

De qualquer forma, as informações disponíveis já permitem cravar: Jango caiu com um empurrão dos Estados Unidos. O governo americano instigou os militares, financiou a oposição, boicotou a economia e tinha tropas e navios prontos se fosse necessário intervir. Não foi. Em boa parte, graças ao próprio João Goulart, um presidente que até hoje desafia classificação.

Leia a íntegra da matéria na Revista Superinteressante (março/2014)

Lá e cá – os passos do golpe no Brasil e nos EUA

30 de março

22h – No Rio, Jango faz um discurso inflado: “o golpe que desejamos é o das reformas de base”. É a deixa para quem desejava outro golpe.

23h – Telegrama do secretário de Estado Dean Rusk para o embaixador americano Lincoln Gordon: “pode ser a última boa oportunidade para apoiar uma ação contra Goulart”.
31 de março

31 de março

5h – O general Olympio Mourão Filho, em Juiz de Fora (MG), aciona conspiradores do Rio. “Desencadeei uma revolução de pijama”, anotou em seu diário.

7h – Chega a Washington um telegrama dizendo que o levante começou em Juiz de Fora. A CIA confirma uma hora depois.

9h – O aeroporto de Brasília é fechado.

11h – Lincoln Gordon avida Washington que Mourão é “um oportunista”. O “dispositivo", militares encarregados de combater o golpe, fica de sobreaviso.

12h30 – A Marinha dos EUA envia uma esquadra que chegaria ao Brasil em 8 de abril. É a operação Brother Sam: 1 porta-aviões, 6 contratorpedeiros, 1 porta-helicópteros e 4 petroleiros.

13h30 – Em conversa telefônica, o presidente Johnson sabe do levante e diz: “devemos estar preparados para fazer tudo”.

15h – O prédio do Ministério da Guerra se divide: golpistas controlam do quinto ao oitavo andar, e governistas, os andares acima e abaixo.

17h – JK vai ao Palácio Laranjeiras e sugere que Jango faça uma pronunciamento conciliador.

22h – O líder das tropas paulistas, Amaury Kruel, liga para Jango e pede que ele demita seus ministros de esquerda. Jango se recusa.

22h30 – O marechal Lima Brayner recebe o adido militar americano em seu apartamento e lhe informa: “Kruel acaba de lançar um manifesto”. Vernon Walters responde: “Graças a Deus!”

23h – As tropas cariocas que enfrentariam as de Juiz de Fora aderem ao golpe.

1 de abril

Madrugada – Generais golpistas Castello Branco e Costa e Silva mudam de esconderijo várias vezes.

8h – Na Rádio Nacional se ouve que Jango recebeu empresários e divulgou nota anunciando “a fidelidade das Forças Armadas”. Tudo mentira.

11h – Jango é informado que o governo dos EUA reconheceria quem o derrubasse.

12h – Gordon avisa Washington que as forças oposicionistas estão crescendo. Jango deixa o Rio em direção a Brasília – o dispositivo falhou.

13h15 – Um encontro na Casa Branca com o presidente Johnson e seu alto escalão de política externa decide não fazer nenhuma declaração pró-golpe – isso só ajudaria Jango.

17h30 – Em teleconferência, Gordon declara a vitória da “rebelião democrática”, diz que a renúncia de Jango será seguida da posse do presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli e informa que Castello Branco dispensou apoio americano.

18h – Castello sai da clandestinidade. É recebido como novo ministro do Exército. O golpe venceu.

22h30 – Acuado em Brasília, Jango voa para Porto Alegre.

Meia-noite – A presidência é declarada vaga. Assume o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli – que já assumira quando Jango renunciou.

2 de abril

Madrugada – Em Porto Alegre, Jango se encontra com Brizola e tem crise de choro.

11h45 – Jango voa para sua fazenda em São Borja (RS), onde estava sua família.

13h – A estação principal da CIA no Brasil relata que João Goulart entrou para o exílio no Uruguai, marcando a vitória oficial do golpe de estado.


18h – Em uma teleconferência, o embaixador Lincoln Gordon comenta a ida de Jango para Montevidéu com uma saudação jubilosa: “Cheers!”

segunda-feira, 24 de março de 2014

Toda memória será castigada?


Neste ano, quando completamos 50 anos do golpe civil-militar no Brasil, para além das investidas das “viúvas” do regime militar, precisamos estar muito atentos para não retrocedermos nos espaços democráticos conquistados. Nossa democracia ainda está na primeira infância e muito temos para avançar, principalmente nos direitos humanos e na igualdade social. O trabalho das Comissões da Verdade devem ser respaldados e suas informações amplamente divulgadas. Acredito que muito ainda será lembrado, revelado e debatido neste 2014, e isso é fundamental, pois como diz o escritor Octavio Ianni, “é pela memória que se puxam os fios da história... O que parecia esquecido e perdido logo se revela presente, vivo, indispensável...”

Com o intuito de relembrar a história, fui buscar nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano uma fonte de inspiração. O livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso” é uma leitura obrigatória para entender as contradições de nosso tempo. Por isso, reproduzo um trecho do livro, onde o escritor fala sobre a amnésia obrigatória imposta pelas ditaduras militares que tomaram de assalto nossos países. Sabe aqueles textos que tu gostaria de ter escrito? Pois é, com Eduardo Galeano me sinto sempre assim.


A amnésia obrigatória

Por Eduardo Galeano

A desigualdade perante a lei é o que faz e continua fazendo a história real, mas a história oficial não é escrita pela memória e sim pelo esquecimento. Bem o sabemos na América Latina, onde os exterminadores de índios e os traficantes de escravos têm estátuas nas praças das cidades e onde as ruas e as avenidas costumam levar nomes dos ladrões de terras e dos cofres públicos.

Como os edifícios do México que desmoronaram no terremoto de 1985, as democracias latino-americanas tiveram seus alicerces roubados. Só a justiça poderia lhes dar uma sólida base de apoio, para que pudessem levantar-se e caminhar, mas ao invés de justiça temos uma amnésia obrigatória. Em regra, os governos civis se limitam a administrar a injustiça, fraudando as esperanças de mudança, em países onde a democracia política se despedaça continuamente contra os muros das estruturas econômicas e sociais inimigas da democracia.

Nos anos 60 e 70, os militares assaltaram o poder. Para acabar com a corrupção política, roubaram muito mais do que os políticos, graças às facilidades do poder absoluto e à produtividade de suas jornadas de trabalho, que todos os dias começavam bem cedinho, ao toque da alvorada. Anos de sangue, sordidez e medo: para acabar com a violência das guerrilhas locais e dos fantasmas vermelhos universais, as forças armadas torturaram, violaram e assassinaram a torto e a direito, numa caçada que castigou qualquer expressão da aspiração humana de justiça, por mais inofensiva que fosse.

A ditadura uruguaia torturou muito e matou pouco. A argentina, em contrapartida, praticou o extermínio. Mas apesar de suas diferenças, as muitas ditaduras latino-americanas desse período trabalharam unidas e se pareciam entre si, como cortadas pela mesma tesoura. Qual tesoura? Em meados de 1998, o vice-almirante Eladio Moll, que tinha sido chefe de inteligência do regime militar uruguaio, revelou que os assessores militares norte-americanos aconselhavam a eliminação dos subversivos, depois da obtenção das informações desejadas. O vice-almirante foi preso, por delito de franqueza.

Alguns meses antes, o capitão Alfredo Astiz, um dos açougueiros da ditadura argentina, foi exonerado por dizer a verdade. Declarou que a Marinha de Guerra lhe ensinara tudo o que fizera. E num acesso de pedantismo profissional, disse que ele próprio era “o homem tecnicamente melhor preparado no país para matar um político ou um jornalista”. Na época, Astiz e outros militares argentinos estavam sendo intimados e processados em vários países europeus pelo assassinato de cidadãos espanhóis, italianos, franceses e suecos, mas do crime contra milhares de argentinos eles tinham sido absolvidos pelas leis que apagaram tudo para recomeçar do zero.



Também as leis da impunidade parecem cortadas pela mesma tesoura. As democracias latino-americanas ressuscitaram condenadas ao pagamento das dívidas e ao esquecimento dos crimes. Foi como se os governos civis devessem ser gratos aos fardados pelo seu trabalho: o terror militar criara um clima favorável aos investimentos estrangeiros e limpara o caminho para que se concluísse impunemente a venda de países, a preço de banana, nos anos seguintes. Em plena democracia, ultimaram-se a renúncia da soberania nacional, a traição dos direitos do trabalho e o desmantelamento dos serviços públicos. Fez-se tudo, ou tudo se desfez, com relativa facilidade. A sociedade que, nos anos 80, recuperou os direitos civis, estava esvaziada de suas melhores energias, acostumada a sobreviver na mentira e no medo, e tão doente de desalento como necessitada do alento de vitalidade criadora que a democracia prometeu e não pode ou não soube dar.

Os governos eleitos pelo voto popular identificaram a justiça à vingança e a memória à desordem, e lançaram água benta na testa dos homens que tinham exercido o terrorismo de estado. Em nome da estabilidade democrática e da reconciliação nacional, promulgaram-se leis de impunidade que desterravam a justiça, enterravam o passado e elogiavam a amnésia. Algumas dessas leis foram mais longe do que seus tenebrosos precedentes mundiais. A lei argentina da obediência devida foi editada em 1987 – e derrogada uma década depois, quando já não era necessária. Em seu afã de absolvição, eximiu de responsabilidade os militares que cumpriam ordens. Como não há militar que não cumpra ordens, ordens do sargento ou do capitão ou do general ou de deus, a responsabilidade ia parar no reino dos céus.

(...) A justiça e a memória são luxos exóticos nos países latino-americanos. Os militares uruguaios que mataram os legisladores Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz caminham tranquilamente pelas ruas que têm os nomes de suas vítimas. O esquecimento, diz o poder, é o preço da paz, enquanto nos impõe uma paz fundada na aceitação da injustiça como normalidade cotidiana.

Acostumaram-nos ao desprezo pela vida e à proibição de lembrar. Os meios de comunicação e os centros de educação não costumam contribuir muito, digamos, à integração da realidade e sua memória. Cada fato está divorciado dos demais fatos, divorciado do seu próprio passado e divorciado do passado dos demais. A cultura de consumo, cultura de desvinculação, nos adestra à crença de que as coisas ocorrem sem motivo. Incapaz de reconhecer suas origens, o tempo presente projeta o futuro como sua própria repetição, o amanhã é outro nome do hoje: a organização desigual do mundo, que humilha a condição humana, pertence à ordem eterna, e a injustiça é uma fatalidade que estamos obrigados a aceitar ou aceitar.

A história se repete? Ou só se repete como penitência para quem é incapaz de escutá-la? Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a rasguem, por mais que a mintam, a história humana se nega a calar a boca. O tempo que foi continua pulsando, vivo, dentro do tempo que é, ainda que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de lembrar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje mais do que nunca é necessário reivindica-lo e pô-lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita; não para que os vivos sejamos ventríloquos dos mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não condenadas ao eco perpétuo da estupidez e da desgraça, Quando está realmente viva, a memória não contempla a história, mas convida a fazê-la. Mais do que museus, onde a pobre se entendia, a memória está no ar que respiramos; e ela, no ar, nos respira.

(...) A impunidade é filha da má memória. Sabiam disso todas as ditaduras de nossas terras. Na América Latina foram queimadas cordilheiras de livros, livros culpados por contar a realidade proibida e livros culpados simplesmente por ser livros, e também montanhas de documentos. Militares, presidentes, padres: é longa a história das fogueiras, desde que em 1562, em Maní de Yucatan, frei Diego de Landa lançou às chamas os livros maias, pretendendo incendiar a memória indígena.

Para citar apenas algumas labaredas, basta lembrar que em 1870, quando os exércitos da Argentina, Brasil e Uruguai arrasaram o Paraguai, os arquivos históricos do vencido foram reduzidos a cinzas. Vinte anos depois, o Brasil queimou toda a papelada que testemunhava três séculos e meio de escravidão negra. Em 1983, os militares argentinos lançaram ao fogo os documentos da guerra suja contra seus compatriotas; e em 1995, os militares guatemaltecos fizeram o mesmo.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Capítulo 8 – A visão estratégica da comunicação no MST

Como reconhecimento do seu papel de melhor jornal do movimento popular do país, o JTST recebeu em dezembro de 1986, o Prêmio Herzog.

No Encontro Regional de 1982, o "Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra" é indicado pelos colonos como o órgão de divulgação das lutas dos cinco estados presentes. Já a partir de abril de 82 (nº 20) o Boletim passa a ter um projeto gráfico e ser impresso em off-set. Diminuiu o número de páginas para quatro e aumentou a tiragem para 1.500 exemplares. A cruz, símbolo dos acampados de Nova Ronda Alta, tornou-se o logotipo do Boletim, que continuou a ser editado pelo Comitê de Apoio.


O Boletim nº 25, de julho de 82, publicou na capa o editorial "Boletim Sem Terra será Regional", onde colocou a decisão tomada no encontro de Medianeira: “Esta decisão revela a importância do boletim e aumenta a responsabilidade de seus responsáveis pela contri­buição às lutas populares no meio rural. A decisão dos colonos de indi­car o "Sem Terra" como seu órgão informativo dá um novo impulso ao boletim, mas os recursos materiais disponíveis e as condições continuam precários. Portanto, o leitor não deve esperar dos próximos números mudanças profundas em nosso infor­mativo. Elas virão com o tempo e serão fruto da semente regada com o esforço e o sacrifício de quem deseja melhorar cada vez mais esta contri­buição à luta dos trabalhadores rurais.”

No número seguinte, agosto de 82 (nº 26), pela primeira vez é divulgada a tiragem no boletim, que passou a ser de 2.500 exemplares e a circulação que abrangia a Regional Sul. O nº 28, de outubro, destacou o Encontro Nacional e anunciou uma edição especial sobre o mesmo que saiu em oito de novembro, com uma tiragem de 3.000 exemplares. Em 1983 foi fundado o Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP), onde passou a ser realizada a produção gráfica do Boletim, a partir de abril (nº 31). Nesta edição o número de páginas aumentou para oito.

O Boletim não circulou durante três meses (junho, julho e agosto) porque o Comitê de Apoio que o realizava assumiu a Secretaria Regional do MST, decisão tomada em janeiro de 83, durante o 2º Encontro Regional, em Chapecó (SC), o que impossibilitou a edição do mesmo. Esta informação foi divulgada no Boletim nº 32, de setembro, que saiu com doze páginas.

A partir de novembro de 1983 (nº 33) o Boletim passou a ser responsabilidade da Secretaria Regional dos Trabalhadores Sem Terra. Esta edição é considerada histórica pelos editores, pois inaugurou uma nova fase do movimento. Além de trazer uma reportagem especial sobre Ronda Alta, onde ao final de três anos, as 200 famílias que lá estavam acampadas conquistaram um pedaço de terra.

O Boletim passou a ser, oficialmente, o Informativo dos Trabalhadores Rurais Sem Terra da Regional Sul, com jornalista responsável (Flademir Araújo), responsáveis pela arte (Humberto Monteiro, Laerte Meliga, Celso Schröder e Antonio da Rocha), pela distribuição (Marcelo Boufler) e colaboradores (Chico Daniel, Rafael Guimarães e Antônio Carlos, de Brasília). A tiragem é de 5.000 exemplares e o número de páginas, dezesseis. O Boletim tem um novo projeto gráfico e a produção continua a ser realizada no CAMP.

Com o crescimento e a institucionalização do MST o "Boletim Sem Terra" virou Jornal (nº 36), em julho de 1984. Sua edição permaneceu sob a responsabilidade da Regional Sul, sediada em Porto Alegre. Ele passou a ser denominado "Jornal dos Tra­balhadores Sem Terra". Este fato foi divulgado no número 35 (abril de 1984), em nota na página dois, intitulada "Vem aí o Jornal Sem Terra", que diz o seguinte: “Em junho está prevista a primeira edição do Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, formato tablóide - isto quer dizer, o dobro do atual boletim - 12 páginas, tiragem inicial de 10 mil exemplares e com circulação na Regional Sul e outros estados do país. A decisão de transformar o boletim em jornal foi tomada durante o Encontro Nacional dos Sem Terra, realizado em Cascavel (PR), no começo do ano. Uma equipe de 10 jornalistas trabalhará na edição do jornal que vai continuar com a colaboração dos próprios lavradores, pessoas ligadas ao trabalho pastoral, sindicalistas e estudiosos da problemática agrária.”

O número inaugural do Jornal dos Trabalhadores Sem Terra (JTST) saiu em julho de 84 (nº 36) e dedicou longa matéria ao assunto - "Depois de três anos um novo desafio" - onde faz um histórico do "Boletim Sem Terra" e afirma sua importância para o movimento. Daí a decisão de transformá-lo em jornal do MST com circulação nacional. Diz a matéria: “Durante o encontro (Cascavel/PR, ja­neiro de 84) os participantes deci­diram que o "Boletim Sem Terra" deveria ser transformado num jornal, já que o movimento era reconhecido como uma organização autônoma e necessitava de um órgão de divulgação forte, amplo e que atingisse todo o país. A partir daquele encontro foi elaborado o projeto do jornal, que foi aprovado no encontro de Curi­tiba.”

O artigo afirmava que o êxito do jornal dependeria fundamentalmente dos próprios trabalhadores rurais sem terra, que deveriam sugerir matérias e assuntos a tratar, discutir com seus companheiros, avaliar seu conteúdo e fazê-lo chegar a um maior número de trabalhadores nos locais mais distantes do país para que ele pudesse atingir um grande número de leitores; que sua impor­tância dependia da contribuição efetiva que pudesse dar para o avanço da organização dos sem terra e para o sucesso de suas lutas; que o MST iria continuar crescendo na luta pela Reforma Agrária, e o jornal deveria acompanhar este crescimento com a participação de todos.

Logo após o Congresso de 85, a edição do JTST passou para a respon­sabilidade da direção nacional do MST, embora permanecesse tempora­riamente em Porto Alegre. Assim, a edição especial do jornal sobre o I Congresso Nacional - nº 42, fevereiro de 1985 - já foi assumida como uma "publicação mensal do MST" e não mais uma publicação da regional sul do movimento.

Passo a passo o jornal foi refletindo o crescimento do MST. No nº 43, de março/maio de 1985, o Jornal Sem Terra muda de ende­reço: sua sede vai para São Paulo. Nos créditos foi publicado o nome do jornalista Flademir Araújo como editor-responsável e o seu colega Sérgio Canova como editor, além de toda a diretoria do Movimento Sem Terra eleita no congresso de Curitiba. Em uma nota "Aos Leitores" deste número do jornal, tem-se a justificativa de sua transferência para São Paulo: “A transferência para São Paulo, centro político mais importante do país, indiscutivelmente, é explicada pelas facilidades que trará à organização dos Sem Terra, tanto do ponto de vista político, como de estrutura e de divulgação de seu movimento.”

O jornal torna-se o porta-voz do MST divulgando os seus princípios estabelecidos desde o I Encontro Nacional e referendados nos encontros e congressos posteriores. Estes princípios são: 1. lutar pela reforma agrária; 2. lutar por uma sociedade justa e igualitária e acabar com o capitalismo; 3. reforçar a luta pela terra, com a participação de todos os trabalhadores rurais, sejam arrendatários, meeiros, assalariados e pequenos proprietários, estimulando a participação das mulheres em todos os níveis; 4. que a terra esteja nas mãos de quem nela trabalha tirando seu sustento e de sua família; 5. o Movimento dos Sem Terra deve sempre manter sua autonomia política.

A bandeira de luta desde sua criação - "Terra não se ganha, se conquista" - e seu lema atual - "Ocupar, resistir e produzir" - explicitam e implicam uma valorização de formas de luta mais inci­sivas (ocupações e acampamentos) e um enorme esforço de orga­nização.

Segundo as deliberações dos encontros e congressos realizados pelo movimento, ele se propõe não apenas a lutar pela realização da Reforma Agrária, mas também pela construção do socialismo. Assim, "os objetivos da luta empreendida", segundo informações do jornal do MST, "vão além da resistência e conquista da terra. Pretendem contribuir para a modificação das relações sociais no campo e a consecução de uma 'sociedade socialista igualitária', deixando clara a existência de um projeto político, que os leva a direcionar suas ações, em todos os estágios de luta do MST, para a formação de uma identidade política mobilizadora".

Esta visão pode ser encontrada nas páginas do JTST, seja através dos editoriais, textos de formação ou artigos de colaboradores, pois o jornal registra a história do movimento e também do Brasil, sob a ótica dos trabalhadores rurais. O jornal reflete todas as fases vividas pelo MST, assim como os seus avanços em termos de organização e estrutura.

Como reconhecimento do seu papel de melhor jornal do movimento popular do país, o JTST recebeu em dezembro de 1986, o Prêmio Herzog 86 - VIII Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos - na categoria imprensa sindical e popular. Este prêmio é oferecido todo o ano pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo àqueles que se destacam nesta área.

terça-feira, 18 de março de 2014

Capítulo 7 - Assim nasce o MST

O MST surgiu da insatisfação dos agricultores com a política de exportação que foi imposta pelo regime militar, responsável pela expulsão de milhares de pequenos agricultores do campo.
Foto: Sebastião Salgado.

É no contexto destas grandes mobilizações que ressurge, no Sul do país, região em que se deu intenso processo de modernização da agricultura, a luta dos "sem terra" através de algumas ocupações - embrião do MST. A primeira delas deu-se em 1978 na Fazenda Sa­randi, no município de Rondinha e Ronda Alta (RS), pelas 1.100 famílias expulsas da Reserva Indígena de Nonoai, em decorrência do conflito entre arrendatários da FUNAI e índios.


Esta ocupação resultou no assentamento, pelo governo, de parte destas famílias em projetos de colonização no Mato Grosso. Os que permaneceram na região foram organizados por membros da igreja local e, com apoio de parlamentares e entidades da sociedade civil, ocuparam em 79, as glebas Macali e Brilhante, originando os assentamentos da Granja Macali I e II, Brilhante e Bom Retiro, em Palmeira das Missões (RS) e CEMAPA, em Rondinha.

As ações dos "sem terra" vão tendo maior organicidade no Rio Grande do Sul e, com o acampamento às margens da estrada próxima à Fazenda Sarandi, surgiu o "Movimento dos Colonos Sem Terra de Encruzilhada Natalino", em Ronda Alta, no mês de dezembro de 1980. Este movimento constituiu-se no marco das lutas dos "sem terra" pela repercussão obtida, por terem conseguido a solidariedade de diversas entidades e propostas de solução por parte do governo.

O movimento de Encruzilhada Natalino serviu também para aglutinar as pessoas que lutavam pela terra em diferentes pontos do estado. Como exemplo disso tem-se, em 1979, a questão ecológica, que explodia como uma bomba na região de Carazinho. Havia muita gente morrendo e sendo ferida pelos venenos agrícolas. Pelas colônias proliferavam grupos de jovens que brigavam pelo meio ambiente. Um deles, em Não-Me-Toque, era liderado por um jovem seminarista, Sérgio Antônio Gorgen. Ele conheceu o padre Arnildo Fritzen na Natalino e o convidou para dar uma palestra para o grupo. Logo após o Frei Sérgio se integrou à luta pela terra.

A partir de maio de 1981, após cinco meses de acampamento, teve início a edição do boletim dos "sem terra", então denominado "Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra". Ele era editado por uma secretaria de apoio em Porto Alegre que ficava numa sala emprestada pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, na rua dos Andradas.

Participavam da elaboração do boletim integrantes da Comissão Pastoral da Terra do RS e profissionais, como os jornalistas Flademir Araújo e Laerte Meliga. A sua primeira edição apresentava onze páginas com uma tiragem de 700 exemplares. Ele era rodado em mimeógrafo, datilografado em folha de ofício sem um projeto gráfico.

Segundo o Frei Sérgio Gorgen, a idéia do Boletim pode ter surgido quando, em novembro de 1980, um grupo de colonos da Fazenda Brilhante acamparam durante dez dias na Praça da Matriz, em Porto Alegre. “No final dessa luta, que nós conseguimos assentamentos em dois lugares, eu e o Arcílio, meu colega, junto com outras pessoas escrevemos um relato do que aconteceu e fizemos uma espécie de boletim chamado "Diário de uma Luta" e enviamos para vários lugares.” Pode-se dizer que este tenha sido o precursor do Boletim Sem Terra, que, conforme o dirigente nacional do MST João Pedro Stédi­le, surgiu para responder a uma demanda de informação e comuni­cação.

Stédile relata que, “o acampamento já durava cinco meses, o que era uma novidade para a época da ditadura militar, então, muitas pessoas da cidade queriam saber como estava o acampamento, o que estava acontecendo lá e a grande imprensa dava pouco espaço. Essa foi uma luta de vanguarda para a época, ela se equiparou, em termos de representação política de luta contra a ditadura no campo, ao que foram as greves do ABC em 1979. Então, Encruzilhada Natalino era um foco de atenção das lutas ru­rais em todo o país, e para responder a essa demanda se criou o Boletim dos Sem Terra. Foi um meio de comunicação e de solidariedade, porque provocava que as pessoas se solidarizassem com a luta, pois, naquele momento, a pró­pria ditadura transformou a Encru­zilhada Natalino na principal batalha política do campo.”

Entretanto o episódio dos "sem terra" de Encruzilhada Natalino não foi isolado. Ações semelhantes eclodiram em outros estados. Em 1980 deu-se a ocupação da Fazenda Burro Branco em Campo Erê (SC), com mais de 300 famílias, e a da Fazenda Primavera em Andradina (SP). Em 1981, em decorrência da construção da hidrelétrica de Itaipu, formou-se o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (MASTRO) a partir do Movimento Terra e Justiça, enquanto movimento dos expropriados pela construção da barragem.

No Mato Grosso do Sul também proliferaram conflitos, nos quais os fazendeiros tentavam despejar centenas de famílias que viviam como parceiros - agricultores que trabalham com suas famílias, arrendam uma terra de outro e fazem uma parceria - nas fazendas e estes mesmos passaram a ocupar as terras.

Em outros estados, como Bahia, Rio de Janeiro e Goiás, também aconteceram ocupações de terra, por parte de famílias que se orga­nizaram para isso. No entanto, não havia nenhum contato entre uma ocupação e outra. A partir de 1981, passaram a realizar-se encon­tros entre as lideranças dessas lutas localizadas. Esses encontros eram promovidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Essa costura política feita pela CPT entre as diversas correntes políticas existentes no meio dos colo­nos deu força à luta deles, porque os uniu. Nos "tempos heróicos", quando havia no Rio Grande do Sul o Movimento dos Agricultores Sem-Terra (MASTER), no norte do país organizavam-se as Ligas Camponesas e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB). Muito embora houvesse consciência política das lideranças de que a miséria do trabalhador era a mesma em qualquer canto do Brasil, não havia, de fato, uma união de esforços.

O máximo que eles conseguiram foi montar a estrutura adminis­trativa da CONTAG, em 1963, e 18 federações de trabalhadores ru­rais, entre elas a FETAG, no RS. Estas entidades, durante o período do Regime Militar, tornaram-se importantes ferramentas nas mãos de quem reprimia os movimentos populares.

A CPT foi criada em 1975, no Encontro Pastoral das Igrejas da Amazônia Legal. Segundo Leonildo Medeiros conta em “A história dos movimentos sociais no campo”, “a CPT assumiu inicialmente o com­pro­misso de "empenhar-se no processo global de reforma agrária do nosso país, dando cumprimento ao espírito e à letra do Estatuto da Terra".  A comissão teria por finalidade "interligar, assessorar e dinamizar os que trabalham em favor dos homens sem terra e dos trabalhadores rurais".

O surgimento da CPT ligou-se diretamente aos efeitos da política de ocupação da Amazônia empreendida pelos governos mili­tares. Em 1971, D. Pedro Casaldáliga divulgava sua carta pasto­­ral, "Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e com a margi­nalização social", onde explicitava uma linha de compromissos com posseiros, índios, peões e outros marginalizados. Na época, o docu­mento teve grande repercussão como denúncia de uma realidade igno­rada pela sociedade.

A ação da igreja na região era duramente reprimida. O processo contra o padre Francisco Jentel em 1973, a inclusão da equipe da Pastoral de São Félix do Araguaia, inclusive do bispo Casaldáliga, na Lei de Segurança Nacional, o assassinato, em 1976, dos padres Rodolfo Lukembein e João Bosco Penido Burnier são apenas momentos ilustrativos das tentativas de impedir a ação da pastoral na região, que vivia uma espécie de convulsão anárquica, na feliz expressão de José de Souza Martins.

Desse quadro surgiu a Comissão Pastoral da Terra, como entidade de apoio às lutas dos trabalhadores, definindo-se como serviço de articulação e de assessoria. Seu eixo de trabalho era o apoio à organização popular: "Os trabalhadores precisam organizar-se livremente, desde as formas mais localizadas de comissões ou associações até a constituição de partidos políticos que canalizem suas forças para organizar ou reorganizar a sociedade segundo suas aspirações".

Investindo no trabalho cotidiano de organização, que passava pela análise e crítica das práticas sindicais concretas, a CPT dispunha a seu favor do fato de que, sendo um organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e contando com alguns bispos entre seus membros, podia fazer valer em determinadas situações o peso institucional. Assim, num período de intensa repressão, pôde assumir o papel de canal de denúncia da violência, adquirindo importância na formação de uma consciência nacional em relação à problemática do campo.

Originado na Amazônia, o trabalho da CPT coincidiu com o de outras ações pastorais de alguns padres e bispos em outras regiões do país, como foi o caso do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Maranhão e Goiás. Rapidamente, espalhou-se por todo o Brasil e em 1979 já eram quinze as suas regionais. No entanto, essa expan­são só se dava nas dioceses em que os bispos apoiavam seus obje­tivos ou, pelo menos, os aceitavam.

A ação da igreja ganhou peso na luta pela terra a partir de 1980, com a divulgação do documento "A Igreja e os problemas da terra", produto da XVIII Assembléia da CNBB. Com a intensificação dos conflitos e a crescente mobilização dos trabalhadores, houve uma maior presença da igreja junto a esse segmento. Sua participação foi mesmo essencial para algumas resistências bem-sucedidas, como foi o caso de Ronda Alta, já citado, e para a articulação do Movimento Sem Terra.

Outro fator que contribuiu para o surgimento do MST foi o tratamento dado pela CONTAG à luta pela terra: resolução do con­flito pela via institucional. As ocupações e os acampamentos organizados pelos Sem Terra, num primeiro momento, passaram por fora do sindicalismo "contaguiano" com o apoio ou mesmo direção da CPT. Esta teve participação ativa na criação das oposições sindi­cais que se formaram no sindicalismo rural brasileiro a partir do início dos anos 80 e ganharam a direção de vários sindicatos de trabalhadores rurais, dando um novo tratamento à luta pela terra, condizente com as resoluções do III Congresso da CONTAG.

A partir de 1982, a luta dos "sem terra" começou a ter maior articulação. Com o objetivo de congregar as lutas, a CPT realizou em julho de 82 um encontro dos trabalhadores rurais "Sem Terra" em Medianeira, no Paraná, envolvendo cinco estados: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Neste mesmo ano, no mês de setembro, realizou-se o I Encontro Nacional dos Sem Terra, em Goiânia, com a participação de repre­sentantes de 16 estados, no qual se verificou a necessidade de formar Comissões Regionais de Trabalhadores Sem Terra. As lide­ranças presentes no encontro avaliaram que no sul existia uma maior organização e uma tendência da luta avançar mais rapidamente, tendo, por esta razão, o movimento constituído suas bases organi­zacionais nos estados desta região.

Em janeiro de 1983, em Chapecó, é criada a Comissão Regional Provisória, composta por dois lavradores de cada estado que se reuniam a cada três meses. A Secretaria Regional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra foi sediada em Porto Alegre.

A partir de 1984, o próprio movimento passou a articular os encontros, até então organizados pela CPT, e realizou o I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR), com a parti­cipação de doze estados, ganhando uma dimensão nacional. Neste encontro formalizou-se a criação do Movimento Sem Terra e as lide­ranças presentes definiram as formas de organização do movimento, seus princípios, suas reivindicações e formas de luta, iniciando-se, a partir daí, as grandes ocupações de terra e os acampa­mentos nos estados em que o MST está consolidado.

Em janeiro de 1985, realizou-se em Curitiba (PR), o I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a presença de 1.500 delegados. Neste encontro foi eleita a coor­denação nacional do MST, composta por dois representantes de cada um dos doze estados que integravam o movimento na época: RS, MG, SC, SP, PR, MS, BA, SE, ES, RJ, RO e MA.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surgiu da insatisfação dos agricultores com a política de exportação que foi imposta pelo regime militar, responsável pela expulsão de milhares de pequenos agricultores do campo. Organizados por entidades civis, como o Movimento de Justiça e Direitos Humanos e a Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra (CPT), após 10 anos de sua instituição, o MST tornou-se autônomo e um dos mais expressivos movimentos sociais do Brasil.

A organização do MST dá, assim, novo sentido à luta dos "Sem Terra", articulando-o à reivindicação da reforma agrária e, numa perspectiva mais ampla, à luta pela construção de uma sociedade sem explorados nem exploradores.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Capítulo 6 - A luta pela reforma agrária

No final dos anos 70 aconteceram grandes mobilizações de diversas categorias existentes no campo brasileiro e entre elas acabou ganhando destaque a luta pela terra.

A luta pela terra é uma constante na história dos trabalhadores rurais no Brasil, mas se acirrou com a modernização da agricultura brasileira, ocorrida pós-64, que aprofundou a diferenciação social no campo.
 
No final dos anos 70 aconteceram grandes mobilizações de diversas categorias existentes no campo brasileiro e entre elas acabou ganhando destaque a luta pela terra. Com a realização do III Congresso da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), em maio de 1979, a luta pela Reforma Agrária se tornou pública.

No que se refere ao tema, este Congresso foi um divisor de águas na história do movimento sindical pós-intervenção. A demanda resultante do encontro era de uma reforma agrária ampla, realizada em todo o território nacional; massiva, pois deveria beneficiar a grande maioria das famílias de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra; imediata, com fixação de prazo para o assentamento das famílias beneficiadas, e com a participação dos trabalhadores em todas as etapas e níveis, desde as decisões em nível nacional até o acompanhamento dos projetos, sua execução e fiscalização.

Os trabalhadores presentes no Congresso pediam a redistribuição imediata das terras que se encontravam em áreas prioritárias e em áreas já desapropriadas, a discriminação e a titulação das terras públicas, com entrega ao legítimo trabalhador rural e a não destinação de áreas às grandes empresas.

Já apontando para os limites do Estatuto da Terra, propunha-se a elaboração de uma lei criando o instituto da perda sumária da propriedade acima de um módulo rural pela não utilização de pelo menos 70% de sua área agricultável e a criação do instituto de área máxima, com limites entre 250 e 700 hectares, de forma a impedir o crescimento de latifúndios e a aquisição de terras com fins especulativos.

Na perspectiva definida no Congresso, a reforma agrária aparecia ainda como condição para a redemocratização do país: Não se pode pensar em democracia, de fato, no Brasil, sem que se integre a massa de assalariados, parceiros, arrendatários, posseiros e pequenos proprietários minifundistas, que constituem a classe dos trabalhadores rurais, à vida do país. E essa integração só se fará através da reforma agrária.

Assim, se no nível das reivindicações mais imediatas, o III Congresso enfatizou o cumprimento da legislação existente, mas não respeitada, no plano geral, houve uma mudança de estratégias quanto ao encaminhamento das reivindicações. Passou a ser proposta a pressão coletiva, com estímulo à mobilização, à ênfase nas ações de resistência e à valorização das iniciativas dos trabalhadores.

Segundo o que se documentou do encontro, tratava-se não mais de pedir, mas de exigir. É sob essa ótica que se pode entender, por exemplo, uma resolução como a de que "o movimento sindical assuma o compromisso de desenvolver trabalhos de base programados, de organização, motivação e mobilização dos trabalhadores rurais, no sentido de ocuparem as terras improdutivas, nelas fixando residência e tornando-as produtivas". Ou seja, a luta pela reforma agrária não se daria somente por encaminhamentos administrativos, mas também através de manifestações públicas.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Capítulo 5 - A imprensa oficial e a comunicação popular

A estreita relação de Roberto Marinho com o general Costa e Silva; de braço dado com o general João Figueiredo; e com Antônio Carlos Magalhães, nos tempos da ditadura militar.

No começo dos anos 70 muito se dizia e pouco se comunicava por todo o país. Os meios de comunicação de massa, se bem que estivessem sob rigorosa censura, recebiam grandes incentivos econômicos e fiscais o que favorecia uma rápida modernização de suas instalações. A televisão teve um crescimento extraordinário depois do golpe militar de 1964. Através dela, o novo regime pôde consolidar-se tanto em termos ideológicos, utilizando-a amplamente para impor suas mensagens de desenvolvimentismo e segurança, não só por meio dos enredos de ficção e dos programas jornalísticos, mas também por meio de maciças campanhas propagandísticas institu­cionais. Como também em termos econômicos, valeu-se dela para acelerar a reprodução do capital, por meio do aumento de consumo de produtos manufaturados pelas classes médias.

Não há dúvida de que a propagação dos aparelhos de televisão por todo o país e na maioria dos domicílios foi uma política traçada de forma premeditada e dentro de um plano global de consolidação do poder político e do modelo econômico. Assim, foi dada prioridade absoluta à instalação de uma rede de microondas capaz de atingir todo o território nacional, ao mesmo tempo em que se incentivou a produção e o consumo de aparelhos receptores e a tecnologia de TV em cores. Da mesma forma, foram oferecidas vanta­gens para que uma rede nacional de TV, a Rede Globo, se instalasse por todo o país, muitas vezes burlando a própria Constituição.

O estabelecimento de um convênio entre a Globo e o grupo norte-americano Time-Life foi amplamente denunciado, inclusive por parlamentares do próprio partido do governo, como o senador João Calmon, que em 1965 também era presidente da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (ABERT). Este convênio, de duvidosa validade legal, lhe deu condições de, a partir do ano de 1969, assumir um virtual monopólio da audiência no Brasil inteiro, com índices médios em torno de 70% do total de aparelhos ligados na Nação.

Conforme Carlos Eduardo Lins da Silva relata em “As brechas da indústria cultural Brasileira”, em 1986, a televisão era um bem presente em 54,9% dos domicílios brasileiros, enquanto em 1970 esta percentagem era de 24,1%. Mas nas áreas urbanas, os números sobem para 73,1% dos domicílios e, nas grandes cidades, ultrapassa a casa dos 90%. Além disso, há de se considerar que em muitas cidades do interior é comum a instalação de aparelhos receptores nas praças públicas, onde se concentram as pessoas para assistirem à programação. Nas cidades há aparelhos em bares e é comum o hábito de pessoas irem todas as noites às casas daqueles que têm TV.

Desse modo, a verdadeira tarefa de comunicar e relacionar os acontecimentos ocorridos nos círculos do poder, no interior da sociedade civil e entre os movimentos populares coube, efetiva­mente, à imprensa alternativa e popular, apesar de todas as limi­tações. Na medida em que surgiam pólos de resistência social apareciam os meios de comunicação, quer através de intelectuais de oposição ou de grupos partidários, que, corajosamente, lançavam jornais tablóides (chamados no início de imprensa nanica), quer através das publicações que surgiam nas CEBs, Associações de Moradores, Sociedades de Amigos de Bairro, Movimento do Custo de Vida, Favelados, Movimento de Terrenos Clandestinos, no meio operário e no meio rural.

A comunicação popular no interior dos grupos de base foi decorrente de processos anteriores. Entre os anos 60/64, o Brasil viveu uma extraordinária experiência de cultura popular, através dos Centros de Cultura Popular (CCPs), do Movimento de Cultura Popular, etc. É também dessa época o Movimento de Educação de Base e o Método Paulo Freire. Todos esses movimentos, duramente reprimidos após 64, ressurgiram lentamente e com outras características após 1970. Então, muitos dos militantes dos movimentos da cultura e da educação popular dos anos 60 integraram-se na tarefa de trabalho de base.

O golpe de 64 havia mostrado que não bastava realizar trabalho de massa. Era preciso conscientizar as classes trabalhadoras brasileiras, um trabalho lento, de formiga, que ampliava os ensinamentos da etapa anterior e assimilava, com outras características, a proposta de Paulo Freire aliada aos ensinamentos de Antônio Gramsci. Muitos desses antigos militantes que puderam permanecer no país passaram a trabalhar junto com a Igreja. O método Paulo Freire, por exemplo, foi amplamente utilizado pelas Comunidades Eclesiais de Base, através de discussões, da maneira de preparar as reuniões, do trabalho lento dos agentes pastorais, tirando os grupos do mutismo. Não se falava de Paulo Freire, cuja obra estava proibida, mas empregavam-se os seus métodos.

Nessa fase, além das CEBs, a Igreja criou a Pastoral Operária, a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário e apoiou a criação de vários centros de documentação e educação popular em todo o país. Regina Festa explica em “Comunicação popular e alternativa no Brasil” que esses centros terão papel fundamental na recriação de uma educação mais comprometida com o nível de consciência da classe subalterna. Desses centros, saiu toda uma produção de folhetos, cadernos de estudo, material para reflexão, cartazes, volantes, audiovisuais, filmes, programas de rádio, material para grupos de mães, favelados, operários, comissões de direitos humanos, alfabetização, além de um material novo para as campanhas, novenas, festas litúrgicas, etc.

As CEBs, por sua constituição que privilegiava a fala, a relação interpessoal, a formação de seus participantes a partir da convivência fraterna e cotidiana, constituíram-se no maior espaço de comunicação, de hominização como explica Paulo Freire, em A Pedagogia do Oprimido: A "hominização" opera-se no momento em que a consciência ganha a dimensão da transcendentalidade. Nesse instante, liberada do meio envolvente, despega-se dele, enfrenta-o, num comportamento que a constitui como consciência do mundo. Nesse comportamento, as coisas são objetivadas, isto é, significadas e expressadas: o homem as diz. A palavra instaura o mundo do homem. A palavra, como comportamento humano, significante do mundo, não designa apenas as coisas, transforma-as; não é só pensamento, é "práxis". Assim considerada, a semântica é existência e a palavra viva plenifica-se no trabalho.

As reuniões, como conta Frei Betto, eram verdadeiros jornais falados, nos quais as pessoas expressavam a fé, discutiam o coti­diano, as lutas de reivindicação, a solidariedade com algum vizinho ou comunidade próxima, a situação do bairro, do país e até mesmo da América Latina. O culto, muitas vezes preparado pelos membros das CEBs, era o único espaço onde se podia falar e comunicar fatos importantes à comunidade. Os mutirões e as festas eram espaços sobretudo de formação e troca, fazendo emergir a riqueza da cultura própria, através de cânticos, poemas, músicas, cordel, mamulengo, teatro, etc. Os dias de estudo e encontros de discussão eram espaços nos quais se dava uma troca intercomunidades, na maior parte das vezes, fazendo ampliar a prática e a riqueza de experiências diferenciadas.

Autores mais recentes afirmam que as CEBs constituíam uma ver­­dadeira universidade popular. De fato, no seu interior produziu-se já nos anos 70 uma rica interação entre educação, cultura e comu­­nicação popular a partir do resgaste das próprias experiências, da formação de seus participantes e dos instrumentos de comunicação utilizados para apoiar esse processo.

Além disso, a imprensa operária, apesar da repressão, não deixou de existir. Era clandestina, feita em mimeógrafo e distribuída de mão em mão. Um dos boletins mais importantes desse período foi o "Luta Sindical", que nasceu em 1976, expressando a consolidação do trabalho político de uma frente de metalúrgicos de oposição que se agrupava em torno à sigla OSM, Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo. A OSM também lançou a proposta das "Comissões de Fábrica", nos moldes gramscianos. Além disso, a equipe tinha panfletos, cadernos de estudo e de formação.

No campo também surgiram várias e pequenas publicações. Apesar da cultura popular ainda ser o recurso mais apropriado para um processo eminentemente interpessoal de comunicação. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), por exemplo, já em 75 lançou o Boletim Nacional da CPT que apoiava a Reforma Agrária, denunciava a grilagem de terra, a ação predatória dos grandes projetos agrope­cuários, apoiava a luta por sindicatos livres e a formação de oposições sindicais, CEBs, etc. Sua circulação, entretanto, era restrita.
A crise que obrigou o governo militar a discutir a "abertura" política também marcou o movimento sindical e popular. O momento era de indefinição apresentando contradições que norteavam o fim de um sistema de poder e o período de articulação de outro por iniciar-se. Os movimentos careciam de uma condução política capaz de englobar o desejo de mudança que a Nação exigiria nos anos se­guin­tes.

Nesse período, início da década de 1980, os meios de comunicação de massa lograram impor três temáticas que dominaram a preocupação e a consciência da sociedade brasileira: crise econômica, violência e sucessão presidencial, apontando a ausência de perspectiva. A comunicação alternativa e popular viveu o mesmo clima de indefinições, sem estratégias, propostas e avanços significativos. Naqueles dias nada parecia indicar que milhões de brasileiros sairiam às ruas exigindo eleições diretas, democracia e desenvolvimento e que essa força social em refluxo retomaria com maior vigor um papel protagônico no cenário brasileiro.

Entretanto, um novo sintoma já estava aparecendo: a adoção de novas tecnologias como resultado de uma outra etapa de desenvol­vimento localizado e seletivo que chegaria mais tarde. O Brasil começava a entrar, em caráter irreversível, na era da eletrônica (nova etapa de aliança com o capital internacional, apesar da Lei de Informática e de Reserva de Mercado), abrindo consequentemente a possibilidade de uso alternativo dessas tecnologias por setores dos movimentos sociais. Da mesma forma que o Estado e o sistema econômico-financeiro se informatizavam, apareciam as novas expe­riências. No Rio de Janeiro foi criado o Insti­tuto Brasileiro de Análise Social e Econômica (IBASE), que utilizava a informática a serviço dos movimentos sociais.

Na área sindical alguns sindicatos adotaram o uso do computador, telex e videocassete a fim de dinamizar e racionalizar o trabalho de formação, informação e organização dos trabalhadores e do movimento popular. Em centros e instituições de documentação, educação e comunicação popular, esses sinais apareciam com o uso do videocassete e das primeiras discussões sobre a viabilidade do computador e das redes alternativas de informática e telex a serviço das organizações populares. O Brasil começava a fabricar computadores, e os diversos componentes dessa indústria que deverá alterar num futuro próximo o quadro das relações sociais e dos valores numa dimensão ainda difícil de quantificar.

Conforme Regina Festa, a experiência brasileira mostra claramente que a comunicação popular e alternativa aparece, se desenvolve e reflui na mesma medida da capacidade de os movimentos sociais articularem o seu projeto alternativo de sociedade.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Capítulo 4 - A retomada da luta

Com as manifestações estudantis de 1977 e o começo das greves operárias em 1978, a resistência à ditadura passa a utilizar os métodos da classe operária.

No plano do movimento popular tem-se que ressaltar o papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que, apoiadas pela Igreja Católica, surgem aos milhares no campo e na cidade. As CEBs compõem-se de pequenos núcleos nos quais as pessoas se reúnem animadas pela fé cristã e, através do qual o trabalhador rural, a dona de casa, o jovem, o operário, etc, descobrem os significados da morte e da injustiça e, a partir do próprio Evangelho, buscam identificar os ideais de vida e de transformação da sociedade.

Para Ralph Della Cava, em seu artigo “A Igreja e a Abertura, 1974-1985”, através da organização de cerca de 80 mil CEBs por toda a extensão do território do país, a hierarquia eclesiástica brasileira (que conta com 358 bispos, ocupando o segundo lugar no mundo católico romano, menor apenas que a hierarquia italiana) surgiu no final desta década como um dos mais importantes "porta-vozes" das classes subalternas da nação.

Além disso, diz Cava, que do ponto de vista da Igreja, as CEBs se converteram em uma forma alter­nativa de organização do culto e, simultaneamente, em "escolas" para educar os explorados na defesa de seus direitos humanos inalienáveis. Enfim, foi a partir da experiência das CEBs e várias outras estruturas ligadas à Igreja, como a "Comissão Pastoral da Terra", que emergiu uma crítica poderosa, de uma ótica popular, ao capitalismo brasileiro e uma defesa igualmente vigorosa de uma nova ordem socialista.

O clero de São Paulo, recrutado em nível internacional, inspirado pela Segunda Conferência dos Bispos da América Latina, que se realizara em Medellín (Colômbia) no mês de outubro de 1968, com frequência perseguido pelo regime, buscava uma volta à fraternidade e a igualdade do cristianismo original. Seus quadros leigos - na maioria católicos, mas entre os quais se incluíam também muitos marxistas - traziam consigo uma experiência política anterior, às vezes clandestina, e preocupações políticas carac­terísticas da situação do momento, na medida em que outros "espaços sociais" se encontravam sob estrita vigilância do regime.

Por sua vez, os teólogos da libertação (cujas obras só começaram a aparecer no início dos anos 70) acharam mais fácil trazer suas teologias "de volta à terra" no quadro específico das CEBs, enquanto os pedagogos da Igreja, especialmente afinados com a linguagem da classe operária, desenvolviam técnicas de aplicação da exegese bíblica aos problemas sociais à sua volta. E então, num desenvolvimento paralelo, intelectuais da Igreja "retrabalharam" completamente o campo da religiosidade "de folk" (algumas vezes designada como religiosidade popular ou catolicismo popular), até então condenada como "superstição". As crenças e práticas dos anal­fa­betos eram agora apreciadas como fontes potenciais de trans­formação pessoal e coletiva.

Em 1978, a situação social era uma panela de pressão prestes a explodir. Pequenos focos de resistência social manifestavam-se em quase todo o país. Na região industrial de São Bernardo (SP), a si­tuação era crítica. Os operários haviam descoberto a manipulação dos índices de reajuste salarial através de falsos percentuais de aumento da inflação nos anos de 72, 73 e 74, quando Delfim Neto era Ministro da Fazenda. Chamados pelas novas lideranças, os operários iniciaram mobilizações nas fábricas e no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, sob a direção de Lula, pela reposição salarial. Até que no dia 12 de maio de 1978 estourou a greve na Scania-Vabis e, em seguida, na Mercedes, Ford e em cerca de trezentas outras fábricas em alguns estados do Brasil. Naquele momento e apesar de todo o trabalho de formação dos operários que existiu nos anos de repressão, o movimento gre­vista e a mobilização pela reposição obedeciam mais a uma explosão humana do que efetivamente à cons­ciência de classe dos operários.

Como afirma Simone Weil, em “A racionalização”, o operário não sofre somente da insuficiência do pagamento. Ele sofre porque na atual sociedade está relegado a um nível inferior, porque está reduzida a uma espécie de servidão. A insuficiência dos salários é apenas uma consequência dessa inferioridade e dessa servidão. A classe operária sofre por estar sujeita à vontade arbitrária dos quadros dirigentes da sociedade, que lhe impõe, fora da fábrica, o seu padrão de existência e, dentro da fábrica, suas condições de trabalho. Os sofrimentos suportados dentro da fábrica por causa da arbitrariedade patronal pesam tanto na vida de um operário quanto as privações suportadas fora da fábrica por causa da insuficiência dos salários.

A partir desse momento, entretanto, a classe operária redefiniu a correlação de forças da sociedade brasileira e a sua própria constituição como classe para si, capaz de propor um outro projeto de sociedade.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Capítulo 3 - A chamada abertura

A política militar não estava mais dando certo e, em 1979, o processo de abertura começou a aparecer. Por conta dos altos índices de inflação, desemprego e da dívida externa, o governo ditatorial foi obrigado a garantir o retorno de algumas liberdades a favor da democracia. 

Com a crise econômica, surgiu, então, aquilo que se convencionou conhecer como “abertura”, isto é, um processo em que o regime, através de atos do governo, cedia de alguma forma e admitia discutir politicamente e mesmo submeter-se a um julgamento eleitoral. Foi um fato novo, sem a menor dúvida. Num país em que imperava a mais rigorosa censura, começaram a repetir-se manifestações, sob as mais diversas formas. Depois estabeleceram-se normas para a reorganização partidária. Vínhamos, e com um passado pouco lisonjeiro, de um sistema bipartidário em que tanto o partido do governo quanto o partido da oposição tinham sido criados por atos do governo ditatorial.

Alguns foram, por isso mesmo, escalados para fazer oposição, misturando-se a ouros que desejavam fazê-la a sério. Com a anistia, por outro lado, em um passe de mágica, abriam-se perspectivas para o retorno à atividade política, quase 20 anos depois, de personagens que o regime, inicialmente ou num segundo tempo, havia tornado párias proibidos, em muitos casos, até de viver no país. Então, surgiu o momento em que as normais baixadas pelo governo permitiram e até facilitaram a multiplicação de partidos.

Segundo Nelson Werneck Sodré, o propósito era evidente: “dividir as forças de oposição, mantendo unidas as que estavam comprometidas com o regime. As regras do jogo estabelecidas foram de tal sorte que surgiram partidos artificiais, que não definem limites da opinião pública senão de forma rudimentar e muitas vezes falsas”.

O quadro se tornou confuso, com figuras evidentemente deslocadas em seus partidos, apregoando aquilo em que não acre­di­­tavam, enquanto outros ficavam enquadrados em organizações com as quais careciam de afinidade. Essa confusão não foi uma coinci­dência, não resultou do acaso, naturalmente. É que as normas foram baixadas dentro do mesmo espírito ditatorial. Tratava-se, para o regime instalado em 1964 e aperfeiçoado em 1968, de operar uma retirada estratégica, bem organizada, metódica, de ritmo contro­lado, destinada a restaurar condições perdidas e assegurar a conti­nuidade do que se estabelecera há quase vinte anos, embora com alguns retoques, tornados inevitáveis pelo desenvolvimento histórico.

A partir de 1974, quando a crise atingiu o Brasil e definiu o fim da fase em que o "milagre" teve condições de se apresentar como um feito do regime, tratava-se de operar, como em 1961, um retraimento em ordem, evitando um agravamento que poderia desem­bocar numa luta interna de todo inconveniente. Por outro lado, na medida mesmo em que o modelo era alastrado a uma área extensa da América Latina, particularmente ao chamado Cone Sul, e nele estava gerando o seu oposto, isto é, um processo de esclarecimento da opinião e de mobilização das forças democráticas em luta com o imperialismo, tratava-se de conduzir as alterações inadiáveis de sorte a salvar o essencial, assegurando o controle destes países.

Esta faixa do continente, em que os regimes de violência armada foram instalados e apregoados como soluções salvadoras, pontilhando os países de tormentos inéditos, como aqueles ligados à tortura institucionalizada, serviu de amostragem para soluções políticas apontadas como capazes de operar milagres. Agora, verifica-se a falácia de tais promessas: os países vitimados e devastados pelas ditaduras militares, no Cone Sul e alhures, assinalam a verdadeira face do apregoado "milagre", apresentando taxas inflacionárias de três dígitos jamais ocorridas, enquanto o desemprego se ampliava e a carestia reduzia as populações a níveis de miserabilidade historicamente desconhecidos. O imperialismo, em suma, mostrava sua face. A derrocada anunciava-se catastrófica.

Neste momento, surgiu no Brasil, como medida saneadora, a "abertura", uma operação meticulosamente articulada. Deveria ser "lenta, progressiva e metódica", em que se fariam concessões na forma, conservando-se o conteúdo intacto. É claro que, desencadeado um processo histórico de teor político e de complexidade natural, o controle fica em jogo, isto é, o processo adquire autonomia e pode, realmente, suscitar e desencadear forças até aí contidas. Mas os planos de contenção foram detalhados, frios, perfeitamente delineados, de forma que o controle do Estado permanecesse sempre com as forças que haviam instalado a ditadura e haviam estabelecido as regras do próprio processo, à sua imagem e semelhança.

Assim, não é por acaso que surgiram movimentos sociais, apesar da repressão. Eles localizam-se no interior dos conflitos, a partir de onde postulam novos espaços sociais e o direito à vida, geralmente negado pelos interesses econômicos. Conforme analisa Vinícius Caldeira Brant, no livro “São Paulo: o povo em movimento”, no bojo desses conflitos, os atos de resistência constituíram por muito tempo uma sucessão de fatos isolados, cuja repetição se dava sob forma de reiteração heróica e, por vezes, suicida. 

Assim, foi inicial­mente, com as manifestações estu­dantis de rua, com as poucas greves e manifestações operárias, com os desafios à censura por parte de jornalistas e artistas, com os discursos de denúncia ou protesto de alguns parlamentares, com as homilias ou declarações públicas de clérigos ou membros da hierarquia eclesiástica em momentos de especial importância. Não houve semana, mesmo nos períodos da mais dura repressão, em que o regime não fosse alvo de alguma manifestação de repúdio.

No plano mais geral da sociedade civil, a situação não era distinta. Embora se verificasse um crescimento da economia, o poder político estava dividido como na antiga Atenas: de um lado, poucos gozando de todos os privilégios e, de outro, a sociedade civil marginalizada. Nessa fase, a atuação do Estado se dava sobretudo no sentido de impedir a acumulação de forças de oposição dos movimentos sociais. Mas, segundo Brant, a constância da oposição estava na própria renovação dos gestos de protestos dispersos. 

Todos sabiam, e o governo não deixava que alguém esquecesse, que a cada protesto correspondia uma represália: cassação de mandato político ou sindical, perda de emprego, expulsão da escola, intervenção em associações e órgãos de representação, recrudescimento da censura, prisão, tortura ou assassinato.

Consequentemente, no início dos anos 70 apareceram uma série de movimentos sociais de resistência, com características diferen­tes, reivindicando espaço, criando pólos de confronto que, aos poucos, rearticulavam as forças de oposição.

terça-feira, 11 de março de 2014

Capítulo 2 - O falso milagre

Na época da Copa de 1970, o Brasil vivia o auge do que foi chamado de “Milagre Econômico”, que aconteceu de 1969 a 1973, coincidindo com o governo do presidente general Emílio Garrastazu Médici.

A farsa do dito "milagre econômico" não durou muito. Nos meados dos anos 1970, a crise se tornou por demais evidente. Segundo o professor gaúcho Luiz Roberto Lopez descreveu em seu livro História do Brasil Contemporâneo, a crise decorreu de quatro motivos principais.

Em primeiro lugar, os mercados que sustentavam o “milagre” já não mais puderam fazê-lo. O limitado mercado interno disponível estava saturado e o externo começou a se retrair não só devido à crise internacional, mas também por causa da concorrência de outros produtos com mão-de-obra barata. Em segundo lugar, a queda do preço da soja, após uma fase especulativa, aproveitando a conjuntura favorável na Bolsa de Chicago, arruinou muitos agricultores e estimulou o êxodo rural. Delfim Neto chegou a defender a situação a partir do argumento de que forneceria mão-de-obra barata para as fábricas.

Segundo Lopez, o problema da soja revela como penetrou no campo o modelo capitalista e seus resultados. A agricultura, privilegiando a exportação, reforçou sua tendência histórica de beneficiar os lucros da minoria em detrimento das necessidades da maioria. O elevado custo da modernização do campo (tratores e fertilizantes) e do crédito rural facilitaram a concentração da propriedade agrícola. Mais ainda, os alimentos industrializados, destinados a um setor social com poder de compra, passaram a fazer crescente concorrência aos alimentos naturais.

Os seguintes dados, apresentado por Lopez, são reveladores do tipo de agricultura que se praticou no país na fase do “milagre”: entre 1961 e 1963, o Brasil produzia 652kg de feijão por hectare plantado, ao passo que, em 1979/80, produziu 484kg. Por outro lado, considerando os mesmos períodos, a produção de soja subiu de 1051 para 1469kg, devido ao fato de ser um cereal exportável. Em 1964, exportava-se 9,7% da produção agrícola, enquanto que, nos anos 90, exportava-se 22,5%. Paralelamente a isso, registre-se que o número de desnutridos subiu de 27 milhões, entre 1961/63, o que representava 38% da população, para 86 milhões, em 1984/85, ou seja, 65% da população. Houve então um aumento de 59 milhões de pessoas desnutridas no país.

Em terceiro lugar, outro fator que também evidencia a crise do modelo econômico do período autoritário é o endividamento externo. Entre 1964 e 1981, a dívida externa subiu 25 vezes, sendo que 73% dela era de particulares e 27% do Estado. Esse endividamento serviu para sustentar um crescimento econômico que em nada beneficiou as classes populares. Parte dele foi porque o governo financiou importações, visando os interesses das multinacionais aqui instaladas. Exemplo disso foi o subsídio da importação de fios de cobre para a fabricação de TVs a cor. Outro motivo foi a necessidade de importar produtos alimentícios que estavam em falta, já que o modelo agrário era exportador. Além dos empréstimos externos destinados a financiar importação de petróleo e servir de capital de giro às empresas.

É interessante ainda lembrar a Resolução 63, do Banco Central, de 21 de agosto de 1967, que incentivou as empresas particulares a buscarem dólares diretamente no exterior. Finalmente, durante o governo Geisel, como os banqueiros internacionais tinham grande estoque de petrodólares acumulados, o Brasil foi estimulado a fazer empréstimos externos, os quais vieram a financiar obras faraônicas, de valor duvidoso (Usina de Itaipu, Usina Angra I, ferrovia do aço, etc.).

Os banqueiros internacionais não podiam deixar o dinheiro parado nos bancos e o Brasil veio a pagar caro por isso. O professor Luiz Roberto Lopez explica que no governo Reagan, com o objetivo de deter a sangria de dólares, a Casa Branca susteve programas de auxílio externo, exceto auxílio militar, e valorizou o dólar, fato que elevou assustadoramente as taxas internacionais de juro. Delfim Neto, então titular da Seplan, ainda apostando no modelo exportador, desvalorizou o cruzeiro para tornar nossas mercadorias mais competitivas lá fora e assim captar os recursos que permitiriam pagar a dívida.

Simultaneamente com isso, como as empresas brasileiras estavam agora buscando dólares no BC ao invés de no exterior, o governo se viu obrigado a fazer novos empréstimos. Só que agora a curto prazo, para escapar dos juros escorchantes, fato que desencadeou as famosas negociações com o FMI e provocou uma mobilização nacional, pois ao atingir em cheio os pontos nevrálgicos do problema social, elas foram vistas como um atentado à soberania. Nesse momento, o que até então era uma questão financeira e técnica tornou-se política, de interesse popular e integrada no contexto mais amplo da contestação ao próprio modelo econômico.

Um quarto fator da crise do “milagre brasileiro” foi a evasão de divisas e a consequente sangria de recursos financeiros do país. As multinacionais empregaram o artifício do superfaturamento na compra de matérias-primas às matrizes para mandar mais lucro para fora do que os 12% do capital inscrito no Banco Central e permitidos por lei. Um bom exemplo de tal mecanismo é o fato de que em 1980, precisando de sulfato de gentamicina, as multinacionais da farmácia pagaram por ele no mercado externo 8 mil dólares por quilo, quando o preço que vigorava era de 2,3 mil dólares.

Além disso, contribuíram para a sangria de divisas do país as facilidades sobre remessas de juros, um verdadeiro convite ao capital especulativo. Ante a crise do mercado, diversas multinacionais começaram a investir na especulação financeira, de preferência na produção. Em 1977, a Volkswagem (do Brasil) lucrou, no mercado financeiro, 5931% mais do que vendendo veículos automotores (Revista Brasil Hoje, outubro de 1981). E o próprio governo auxiliou tal processo quando fez uma reforma cambial, em dezembro de 1979, reduzindo o imposto sobre remessa de juros para fora, de 25% para 1,25%.

Ao iniciar a crise, a tendência do regime foi culpar os árabes de terem aumentado o preço do petróleo. O que era uma falácia que servia de cortina às mazelas de um modelo que privilegiava a concentração de renda e a exportação. O crescimento do Brasil era decidido pelo capital internacional. Nesse período houve dois aumentos importantes do petróleo – 232% em 1973 e 174% em 1979. Alega-se às vezes que o primeiro aumentos, o que causou maior impacto, deveu-se a uma atitude de represália dos árabes por causa do apoio do Ocidente à Israel na Guerra Destino/Yom Kippur. Todavia, é necessário notar que houve outra causa, Compensar a desvalorização do dólar decretada por Nixon, considerando que o barril de petróleo era cotado em dólar.

Quanto a Nixon, decidira desvalorizar o dólar para tornar as mercadorias norte-americanas mais competitivas em face da concorrência japonesa e alemã. Para o Brasil, a crise do petróleo se mostrou a fragilidade de apoiar todo um projeto desenvolvimentista em fatores tão circunstanciais e fora de controle das decisões internas, como a exportação e o petróleo barato, ou socialmente tão perigosos, como fonte potencial de rebeldia e contestação, como o achatamento salarial.

Bernardo Kucinsky observa que a participação dos mais pobres na renda nacional era de 17,7% em 1960, 14,4% em 1970 e 11,8% em 1976, ao passo que a dos 5% mais ricos subiu, nas mesmas datas, de 27,74% para 34,8% e 39%. Esses dados são significativos para se verificar que o modelo econômico adotado pelo regime militar marginalizou uma maior parcela da população. Como bem assinalou o economista Pedro Dutra Fonseca, o capitalismo necessariamente se fundamenta na desigualdade. 

Entretanto, o capitalismo brasileiro, nestes anos de ditadura, foi mais que desigual, foi excludente. Excluiu completamente do mercado grandes parcelas da sociedade e restringiu ao extremo o espaço de negociação. Portanto, para se manter, ele dependeria da combinação, que nunca poderia durar, de uma vigorosa repressão interna como uma efêmera euforia internacional.

No final da década de 1970, a euforia interna e internacional já se achava matizada de desconfianças e pessimismos. Ruindo a euforia, ruiu junto o arcabouço do Estado autoritário, por tanto tempo sustentado pelos Atos Institucionais.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Capítulo 1 - Nada é por acaso...

Marcha da Familia com Deus, em apoio aos militares. Jornal do Brasil: Sexta-feira, 20 de março de 1964. 


Os movimentos sociais não ocorrem por acaso. Eles têm origem nas contradições da sociedade, o que leva parcelas ou toda uma população a buscar formas de conquistar ou reconquistar espaços democráticos negados pela classe no poder.

No Brasil, os dez anos que sucederam o Ato Institucional n. 5 geraram extraordinários e heróicos espaços de resistência social. O AI-5 resultou da inconformidade das alas mais à direita do sistema militar com as manifestações de oposição ao regime do movimento estudantil e políticos civis que haviam formado uma frente ampla reunindo desde o deposto presidente João Goulart até o seu mais feroz adversário, o ex-governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda. Aquele foi o instrumento jurídico que possibilitou ao governo fechar o Congresso Nacional, suspender garantias constitucionais e instalar efetivamente no país a Doutrina da Segurança Nacional formulada pela Escola Superior de Guerra (ESG).

A Doutrina da Segurança Nacional partia do princípio de que a sociedade era vulnerável e a democracia frágil para enfrentar o seu insidioso inimigo - o comunismo internacional. Assim, justificava-se qualquer brutalidade cometida pelo governo para “salvar” a família brasileira e seus valores “humanistas e cristãos”. Sequestros, torturas, perseguições variadas tinham sua legitimidade assegurada com base na “guerra” que o sistema travava contra a guerrilha urbana e rural.

O Brasil conheceu raros intervalos democráticos, um deles foi o período entre a posse de João Goulart e o golpe militar de 1964. A história do país foi marcada por sua longa tradição de arbítrio político imposto pelas classes dominantes, disfarçado, aqui e ali, pela vigência de legislação destinada a, teoricamente, preservar os direitos individuais e políticos. Em Vida e Morte da ditadura – 20 anos de autoritarismo no Brasil, Nelson Werneck Sodré explica que nesse período, caracterizado pelas acesas controvérsias, pela acirrada luta política, pelo afloramento e desenvolvimento das contradições, pelo questionamento democrático de soluções, as forças reacionárias e o imperialismo compuseram-se e operaram esforços organizados e sistemáticos para desferir o golpe definitivo.

Eles começaram pelo controle dos meios de comunicação de massa, através dos quais exerceram intensa propaganda de seus objetivos, ao mesmo tempo que mobilizavam a opinião contra o regime e aqueles que o encarnavam. Essa ação pertinaz e continuada visou principalmente as Forças Armadas para coloca-las em condições de intervir no momento escolhido. A reação, assim alimentada e conjugada ao imperialismo, montou, desde logo, um instrumento adequado à luta eleitoral, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Este financiou centenas de candidatos nos pleitos eleitorais e tornou-se uma força política mais poderosa que os partidos.

A história do IBAD consta dos arquivos da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a sua estrutura e os seus processos. A reação vitoriosa em 1964 cassou os mandatos de todos os parlamentares que haviam tido a ousadia de tentar apurar aquelas ações. Em seguida, uma vez que a intervenção do imperialismo nas eleições resultara em fragorosa derrota, a reação criou outro instrumento, o Instituto de Pesquisas e Estudos Social (IPES), destinado a articular, para ações conspirativas e para todo tipo de iniciativas, os elementos capazes de resistir à pressão democrática e a servir os propósitos golpistas em andamento.

A história do IPES, organizado por banqueiros e empresários e comandado na prática por agentes da CIA, está também contada em detalhes, pelo desvendamento de seus arquivos, no livro de René Armand Dreifuss, intitulado “1964: a conquista do Estado”. Reunindo políticos, empresários e militares, o IPES constituiu a peça principal para a montagem da operação que, deflagrada em 1964, estabeleceu a ditadura militar e impôs ao país, com o AI-5, um regime fascista sob o qual não só as franquias democráticas desapareceram como foram realizadas operações destinadas a estabelecer o controle econômico, político e militar do país. Tudo isso sob o comando direto dos Estados Unidos, a que se submeteram, como de praxe, os elementos nacionais ligados à conspiração. Estabelecida a ditadura fascista e gerado o “modelo brasileiro de desenvolvimento”, também apelidado, pela propaganda organizada, de “milagre econômico”, foi estruturado um aparelho de Estado apto a manter a política adotada, impondo-a a toda a nação, vencidas as últimas resistências.

Naqueles anos duros, a mobilização social não foi neutralizada apenas pela censura e pela repressão, mas também por toda a máquina publicitária montada pelo poder vigente e pela euforia do modelo capitalista que combinava consumismo, exportação, petróleo barato e modernização acelerada. A Rádio Nacional, o veículo oficioso dos tempos do populismo, foi substituída pela Rede Globo como novo símbolo de consumo e padrão cultural da sociedade de massas da fase do capitalismo transnacional. Como a classe média podia comprar, atendendo aos apelos diretos e indiretos da TV, não se incomodava muito com a violência que se abatia sobre um punhado de “subversivos”.